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A linda e incomum história de Jacqueline Rocha Côrtes foi marcada por incontáveis nascimentos e renascimentos
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A linda e incomum história de Jacqueline Rocha Côrtes foi marcada por incontáveis nascimentos e renascimentos
Publicado:23.01.2017 - 18:10
última modificação:
04.11.2022 - 10:37
A linda e incomum (mas estranhamente universal) história de Jacqueline Rocha Côrtes começou em Niterói, no Rio de Janeiro, no dia 1º de fevereiro de 1960 – mas sua vida foi marcada por incontáveis nascimentos e renascimentos.
O primeiro ocorreu em meio aos pais Curt e Shirley – ambos “da roça”, nas palavras de Jacque – e à família que formaram. “Ele era um homem de fibra, bastante sábio; o poeta da cidade; um machista, o filho primogênito de uma família patriarcal – e um grande ser humano e maravilhoso pai, que me deu tudo o que podia de melhor, e a quem sou grata até hoje”, diz hoje Jacque, com emoção. A mãe, por sua vez, era “a fortaleza, a leoa”: “Uma destemida, uma guerreira; uma mulher sem estudo, mas à frente de seu tempo – cujo amor intenso tantas vezes me salvou”, complementa. Ambos foram cruciais à formação da pessoa que o mundo hoje conhece por meio do eloquente documentário “Meu Nome é Jacque”, de Angela Zoé. “Tenho em meus pais dois grandes exemplos de vida: o sábio pensador e a lutadora guerreira que faz as coisas aconteceram; esses dois traços muito pungentes da vida dos dois estiveram sempre muito marcados em mim”, diz Jacque, a segunda de cinco irmãos, ao lado de Mauro, Renato, Mônica e Gisele – “quatro pessoas maravilhosas” também fundamentais à sua formação. “Somos pessoas lutadoras, que acertaram, que erraram – todos com vontade de perseverar e de estar juntos para além de nossas diferenças”.
Ou: o amor sempre foi maior. E ainda bem que foi assim – porque muitos desafios se colocaram no caminho de Jacque ao longo de seus 56 anos de vida.
O primeiro, talvez, foi nascer com um corpo com o qual não se identificava. Na primeira infância, aos 4 anos – em São Paulo, brincando de pé no chão – Jacque já se sabia menina, “com inocência, mas sem consciência”. “Na segunda – entre os 8 e os 13 –, fui me revoltando por meu estado: por ser menino e não ser menina.”
A adolescência, portanto, foi sofrida. O bullying – verbal e físico, sempre presente – se acirrou. Os irmãos ajudavam a protegê-la, mas Jacque já mergulhava na tristeza e num onírico mundo interno. “Fugia para o mundo da Jeannie é um Gênio, achando que eu poderia fazer uma mágica – que poderia piscar os olhos e plim: – imaginava o meu corpo feminino; imaginava um príncipe encantado.” Jacque sonhava com o amor romântico. Só soube o que era ser de fato transexual aos 16 anos, quando leu uma notícia no jornal. “Percebi então que existiam pessoas como eu: de um sexo, mas sentindo-se de outro”, diz. Eram os anos 1970, de “paz e amor, bicho grilo, acampamento”.
Jacque foi ficando meio cigana, extravasando sua feminilidade em lugares desertos. No dia a dia, dava aula como professor de inglês. “Queria deixar o cabelo crescer; tinha as pernas torneadas; era mignon, arredondada – mas continuava a viver a vida de um rapaz, socialmente.” Fez teatro e ballet e tornou-se bailarino profissional.
Por volta dos 20 anos, começou a vestir-se com roupas femininas e a maquiar-se em momentos específicos: em festas, nas casas de amigos, em locais em que achava que poderia manifestar sua verdadeira identidade. Ao longo dos anos, a verdade de Jacque foi tomando corpo – culminando em um tratamento hormonal, aos 38 anos; na cirurgia de readequação genital, aos 41, e, por fim, no casamento, na maternidade e na madura serenidade atual.
AIDS – Em 1994, os 34 anos, uma nova revolução tomou a vida de Jacque como uma gigante e inesperada onda: a descoberta da aids. Foi um divisor de águas. “No dia de 6 de junho de 1994 – há exatos 22 anos –, fui buscar o resultado do teste que eu havia feito. Recebi o envelope fechado; não tive coragem de abrir na hora. Parei numa praça e abri o envelope, e aí comecei a chorar. Fiquei uns 20 minutos no carro, chorando; o mundo caiu. Em casa, minha mãe me abraçou e chorou comigo. À noite, contei para o meu pai; ele me disse que a única coisa que esperava de mim era fibra, e que estava do meu lado.” Jacque contou também para os irmãos e para alguns amigos, recebendo o seu apoio. Mas em vão: à época, ainda se morria de aids, e Jacque a recebeu como “a morte com aviso prévio”. “Fiz um drama enorme; eu não sabia nada sobre aids: tinha preconceitos e achava que aids era coisa de gente promíscua”, conta, lembrando que não acreditava que iria “passar dos 36”.
Mas Jacque voluntariou-se em um ensaio clínico e na sequência, com a Lei Sarney, iniciou o tratamento antirretroviral que mantém até hoje, em que vive com carga viral indetectável. “Tenho adesão ao tratamento, à minha própria aids”, diz, afirmando-se “SUS-dependente”.
O acolhimento pelo movimento social também a salvou. “Na ONG para soropositivos Grupo de Incentivo à Vida (GIV), descobri que a aids era uma doença do mundo e não exclusivamente minha – e renasci para a vida.” Jacque saiu do isolamento, encontrou pares e viu todo tipo de pessoa vivendo com aids. Em seguida, em 1996, foi uma das fundadoras do grupo que deu origem à atual Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids (RNP+).
A partir de 2000 e do intenso ativismo nacional e internacional – incluindo participações em diversas assembleias da Organização das Nações Unidas –, começou a trabalhar com aids, passando pela área de Cooperação Internacional do Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais (DCCI) e pelo Programa Conjunto das Nações Unidas para HIV/Aids (Unaids) como primeira consultora transexual.
UMA NOVA CHANCE – Mas não é só: Jacque enfartou no final de 1999. Em janeiro de 2000, ao fim de 11 horas de cirurgia de coração, teve uma parada cardíaca e uma experiência de quase-morte que reforçou sua fé na espiritualidade. Novo renascimento: “Tive mais uma chance de viver”, diz, com um sorriso cheio de candura.
AMOR – Na recuperação da cirurgia, uma onda de amor entrou na vida de Jacque – e uma nova vida se desenhou nos delicados cuidados do primo Vitor. (Os dois se conheceram seis anos antes, mas “não havia entre nós nenhum vínculo de parentes, apenas uma grande amizade”.) Vitor se identificava como gay; Jacque estava em tratamento para readequação genital. “Meu deus, depois de tantos anos, fui me apaixonar por um cara gay!”, exclama Jacque, em retrospecto, com humor.
Três anos depois, em 2003, de volta de uma viagem de trabalho a Cuba, Jacque chegou em casa e se encontrou um tapete de pétalas de rosas a seus pés. Um longo beijo e a declaração de amor que mudaria a sua vida: “Eu estou apaixonado por uma mulher”, disse Vitor. A mulher Jacque era virgem.
“Essa é a história de um encontro de almas: eu não sei viver sem ele; ele não sabe viver sem mim”, diz Jacque, hoje. O casal se casou no civil no dia 14 de fevereiro – Saint Valentine’s Day – de 2004.
Hoje, aposentada, fora do ativismo há quatro anos, Jacqueline Rocha Cortes vive na cidade praiana de Araruama, no estado do Rio de Janeiro, ao lado do marido e dos filhos adotivos – um menino de 14 (“meigo, doce, criativo, reservado, teimoso”) e uma menina de 8 (“falante, conversadeira, inteligente, forte”) – “cuidando da saúde, do coração, da vida”.
MATERNIDADE – Eu sempre quis ser mãe, educar e dar amor. Em 2010, Vitor “desengavetou a ideia”. “Meus filhos nasceram para nós em 2011, quando ele tinha 9 anos e ela tinha 2 anos”, conta Jacque – “coincidência ou não”, no dia dos santos Cosme e Damião. São irmãos biológicos. A ideia inicial era adotar apenas uma criança, mas, diante da realidade – a maioria dos órfãos são crianças negras e com irmãos –, o sonho foi adaptado. Quando foram apresentados à história dos filhos, “choramos diante das fotos e soubemos que eles eram nossos”. “Tudo aquilo já estava escrito; são filhos que vêm por meio de Deus”, diz Jacque.
A fé move Jacque – uma montanha de força e amor e coragem. Através de todas as revoluções – tal qual o personagem Orlando, de Virginia Woolf, que nasce homem, vive 400 anos e morre mulher, sempre e irremediavelmente detentor de si mesma –, Jacque se mantém constante, “sem estar à mercê do jugo alheio”. Na insistência de ser quem sempre foi.
“Tenho muita fé; tenho Deus no meu coração. Acredito piamente que estou aqui cumprindo uma missão da melhor maneira que posso, com minhas sombras e minhas virtudes. Sou uma pessoa que acerta, que erra, que chora, que ri, que tem alegrias, que tem tristezas, que tem suavidade, que tem agressividade... um ser humano como qualquer outro, que procura tirar das lições o melhor que eu puder”, diz Jacque, passando adiante sua lição universal e contribuindo, sempre, para que o mundo seja um lugar melhor.
Típo da notícia: Notícias do DCCI