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“Não tenho mais medo: se alguém perguntar, digo, ‘sim, eu tenho HIV’”, diz Rafuska

29.12.2016 - 10:56
04.11.2022 - 10:22

“Não tenho mais medo: se alguém perguntar, digo, ‘sim, eu tenho HIV’”, diz Rafuska

Rafaela de Queiroz é uma moça surpreendente: a cada dia, vira a sorte a seu favor. (E não se deixe enganar pelo corpo franzino, nem pela candura: os pretos olhos são fortes, vivos, inteligentes, irreverentes.) 


Ela aprendeu a fazer isso. 


Porque Rafuska – como é mais conhecida – nasceu com HIV em agosto de 1991 em Madureira, na região metropolitana do Rio de Janeiro. (Hoje vive em Oswaldo Cruz, também na Zona Norte do Rio.) A irmã mais velha nasceu sem o vírus. O pai morreu de aids em 1993; a mãe, em 1994. No mesmo ano, “a irmã de meu pai – que hoje chamo de ‘mãe’ – e seu marido nos adotaram legalmente”, conta. 


Foi uma alegria. A adaptação à nova realidade não foi difícil para a menina de 3 anos: “Eu não me lembro dos meus pais; passei rapidamente a chamar meus tios de ‘mãe’ e ‘pai’, porque o nosso vínculo já era muito forte”. Aos 7, no hospital em que era tratada, Rafaela por fim descobriu que tinha HIV. “Em certo momento, perguntei o que é que eu tinha, e por que tinha sempre de tomar remédios”, explica. 


Assim, a despeito da soropositividade – e do tratamento antirretroviral a partir dos 5 anos de idade –, a infância de Rafuska foi feliz e tranquila, cercada pelos cuidados dos pais adotivos. O HIV não era tabu, tampouco motivo para diferenciá-la da irmã ou de outras pessoas com quem convivia. “Apesar de tudo, sempre me vi como uma criança absolutamente normal” , diz. “Na adolescência, optei por não contar que tinha HIV, porque havia muito coitadismo, e eu sempre odiei essa coisa de pena”, acrescenta, afirmando que, “até hoje, quando as pessoas reagem assim, digo: ‘pena coisa nenhuma: nasci com HIV, mas sou uma pessoa como qualquer outra”. 


A naturalidade e a força com que aceita sua sorologia foram conquistadas ao longo dos anos, sobre a sólida base da aceitação na infância – mas não sem desafios, evidentemente.


O maior impacto de saber-se soropositiva ocorreu aos 15 anos, em 2007, no primeiro contato de Rafuska com outras pessoas vivendo com HIV – além daquelas que conheceu no hospital –, durante o II Encontro Nacional de Jovens Vivendo com HIV/Aids em Salvador (BA). “As pessoas falavam sobre suas vivências e relatavam a discriminação que sofriam na escola, na família; havia jovens órfãos que diziam que nunca seriam adotados por terem HIV”, conta. Rafuska então descobriu o dissabor de um fato inescapável: ao contrário dela, as pessoas com HIV eram vítimas de intensa discriminação. Descobriu que o vírus era cercado por estigma e preconceito – e, para se proteger, decidiu se calar.


Paradoxalmente, foi nesse mesmo encontro que Rafuska começou a militância pela qual é hoje conhecida. Iniciou-se no ativismo com a criação da Rede Jovem Rio+/RJR+, em 2009; desde então, foi voluntária no Programa Saúde nas Escolas (PSE), entre 2011 e 2013, e pesquisadora e dinamizadora jovem-jovem no PSE em um projeto Fiocruz/Ministério da Saúde/Ministério da Educação, entre 2014 e 2016, entre muitas outras experiências. (“Na militância, gostava sempre de trabalhar entre pares, por eu ser jovem: os jovens tinham menos receio ou vergonha de fazer perguntas que eles mesmos diziam não ter coragem de fazer a adultos. No ativismo em rede, como sou de transmissão vertical, minha vivência sempre trouxe muita ‘curiosidade’ aos novos jovens que se descobriam vivendo com HIV. Atualmente, não tenho militado muito – por questão de tempo, dinheiro e outros –, mas acabo aceitando convites para participar de eventuais rodas de conversa ou palestras. Meu ativismo é entre pares; existe uma enorme necessidade de sanar dúvidas que muitos não conseguem tirar com seus infectologistas. Não abandono o ativismo por saber que posso fazer a diferença na vida de outras pessoas, porque ainda hoje muitos acreditam que vão morrer muito rápido. Então, hoje administro no Facebook, com outras pessoas, um grupo secreto e a fanpage Florescer, que aborda feminismo, negritude, HIV... e, como toda pessoa que ‘vira referência’, converso, troco vivências pelo WhatsApp e assim por diante.”)  

                 
Foi também durante o II Encontro Nacional de Jovens Vivendo com HIV/Aids que começaram os questionamentos da jovem Rafuska sobre a vida com HIV. Veio uma fase de intensa rebeldia. “Nunca neguei minha sorologia, mas fiquei saturada de tomar o remédio todos os dias: eu nunca havia tido escolha”. Ela quis então ter em suas mãos a escolha de parar de tomar os remédios, “para ver no que iria dar”. Passou a testar o tratamento, propositadamente falhando na adesão à terapia. “Eu queria provar, na prática, se dependia daquele remédio para viver”. Como não poderia deixar de ser, os experimentos resultavam em aumento de carga viral e queda na contagem de células CD4 – mas nela não adoeceu. “Mesmo assim, voltei a tomar os antirretrovirais e nunca mais parei”, diz, com serenidade.


(As células CD4 são as mais importantes do sistema imunológico, que protege o organismo contra infecções e doenças. A sua contagem revela quantas células CD4 estão presentes em uma única gota de sangue; quanto maior o número de células CD4 no organismo, melhor. Desde dezembro de 2013, com a adoção do Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Manejo da Infecção pelo HIV em Adultos, o Brasil indica o tratamento antirretroviral para todas as pessoas com HIV, independentemente dos níveis de CD4 – o que vem resultando no aumento no número de pessoas com HIV em tratamento e com carga viral indetectável. A propósito: carga viral indetectável é a condição de uma pessoa soropositiva que atingiu a supressão do vírus como resultado do uso consistente de medicamentos antirretrovirais. Quem tem carga viral indetectável não está curado do HIV, mas, enquanto mantiver o tratamento antirretroviral, tem o vírus controlado e preso em certas células do organismo – sem se multiplicar, sem danificar o organismo e sem ser transmissível.)


Hoje, a carga viral de Rafuska é indetectável e ela sabe tudo o que há para saber sobre a vida com HIV. Às claras. “Não tenho mais medo: se alguém perguntar, digo, ‘sim, eu tenho HIV’”. Ela deixa um alerta: “Apesar de o HIV ser uma doença crônica controlável e dos avanços dos antirretrovirais, há outras complicações a longo prazo; eu cuido da minha alimentação, do meu emocional”. E, contra o preconceito, lembra o óbvio: a forma de transmissão é irrelevante; o modo como uma pessoa vivendo com HIV adquiriu o vírus é o que menos importa. Para todos, tratamento. Para os demais, as várias alternativas hoje oferecidas pela prevenção combinada.
(No Brasil, o Sistema Único de Saúde coloca à disposição um leque de alternativas para a prevenção ao HIV, na chamada “prevenção combinada” – que inclui o uso dos preservativos masculino e feminino e, no caso da pessoa soropositiva, da adesão ao tratamento antirretroviral rumo à carga viral indetectável. Essas medidas preservam a saúde do portador e não oferecem risco para o parceiro sorodiferente, que não tem HIV.)


Rafuska está bem: “Mas sou diferente a cada dia”, brinca, dizendo que sua espiritualidade a harmoniza e a ajuda a encontrar sentidos em tudo o que vive. (“Eu me considero espírita kardecista, mas tenho inúmeras crenças místicas”, afirma – dizendo acreditar na troca reichiana de energia com a natureza, com a água, com a terra, com o vento. “Minha religião está dentro de mim, no que eu acredito que possa me fazer bem”, afirma.) Rafuska se forma em Psicologia ainda este ano; 2017 será “de novas possibilidades”.


Assim – de mil formas, a cada dia diferente –, Rafuska vira sempre a sorte a seu favor.

 

Típo da notícia: Notícias do DCCI