Hepatites agudas graves de etiologia a esclarecer

HEPATITE AGUDA DE ETIOLOGIA A ESCLARECER EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Histórico

Em 5 de abril de 2022, o Reino Unido notificou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a respeito de dez casos de hepatite aguda grave sem causa definida em crianças menores de dez anos em território escocês. Até 8 de abril de 2022, o Reino Unido já havia detectado um total de 74 casos semelhantes em todo o seu território. 

Os casos consistiam em crianças menores de dez anos que apresentaram síndrome de hepatite aguda grave, com aumento proeminente das enzimas hepáticas, frequentemente acompanhado de icterícia e por vezes precedido de sintomas gastrointestinais, como náusea, vômitos, diarreia e dor abdominal. Essas crianças tiveram resultados negativos em exames para os vírus das hepatites A, B, C, D ou E, e por isso foram classificadas como casos de hepatite aguda sem causa definida, ou de etiologia a esclarecer. 

Mais exames foram realizados nessas crianças para investigar outras causas, e muitas apresentaram resultados positivos para adenovírus. Uma quantidade menor delas apresentou resultados positivos para SARS-CoV-2. 

Após a notificação do Reino Unido, a OMS definiu critérios básicos para a identificação dos casos prováveis, e até 08 de julho de 2022 foram reportados, por 35 países, 1010 casos que se encaixavam nesses critérios. Desses, 46 (5%) crianças necessitaram de transplante hepático, e 22 (2%) faleceram. 

Quase metade (48%) dos casos notificados à OMS são de países europeus, concentrados principalmente no Reino Unido. A segunda região com maior número de notificações é a Região das Américas, com 435 casos, sendo 334 provenientes dos EUA. 

Atualmente, o número de casos notificados vem diminuindo pelo mundo. A causa dessas hepatites ainda está em investigação, com algumas hipóteses já levantadas.

O que é

Hepatite é uma inflamação do fígado, e o nome “aguda” indica um quadro de evolução rápida e/ou recente. Existem muitas causas reconhecidas de hepatites em crianças e adolescentes, como infecções diversas, intoxicações e doenças congênitas, imunológicas, circulatórias ou metabólicas. No caso específico do atual surto, a definição utilizada pela OMS para caso provável se resume a um caso de hepatite aguda grave em criança ou adolescente, cuja investigação da causa excluiu as hepatites virais A, B, C, D e E. 

As hepatites A, B, C, D e E são causadas por vírus específicos, sendo por isso chamadas de hepatites virais. Elas representam as principais causas infecciosas de hepatites, mas não necessariamente as maiores causas de hepatites em geral, em todas as regiões no mundo. Um caso de hepatite aguda cujo diagnóstico para hepatites virais foi excluído ainda pode ter outras causas conhecidas, a serem investigadas. 

A definição de caso pela OMS é propositalmente ampla devido à magnitude do surto, com o objetivo de estimular uma investigação mais específica desses casos. De fato, parece ter havido um aumento de casos de hepatites agudas graves em crianças e adolescentes em alguns países, caracterizando o surto, e esses casos não foram causados pelos vírus das hepatites A, B, C, D ou E. Porém, outras causas conhecidas podem estar relacionadas, e as principais linhas de investigação mundiais, no momento, se concentram em etiologias já descritas historicamente.

No Brasil, os critérios atualmente utilizados para delimitar os casos já levam em consideração causas de hepatites agudas em crianças e adolescentes comuns no território nacional, além das hepatites virais, tornando a definição de Caso Provável de Hepatite Aguda de Etiologia a Esclarecer em Criança ou Adolescente mais específica para a nossa realidade. As definições de casos podem ser consultadas no Ofício Circular nº 120/2022/SVS/MS, de 28 de junho de 2022.

Linhas de investigação atuais

Em alguns países afetados pelo surto, as principais linhas de investigação no momento envolvem o adenovírus, devido ao fato de que muitas crianças acometidas tiveram esse vírus detectado por exames durante a investigação da causa. Outras hipóteses principais envolvem o SARS-CoV-2, outros vírus e também intoxicações por substâncias conhecidas. 

Os adenovírus são uma família de vírus conhecida há mais de 50 anos, estando envolvidos em síndromes febris diversas em crianças. O principal tipo de infecção que causam nessa faixa etária é o acometimento das vias aéreas superiores, como faringite ou rinite e otite. Porém, também podem causar infecções como pneumonia, gastroenterite e conjuntivite, entre outras. Muitas vezes, as infecções causadas por adenovírus são autolimitadas e brandas, mas podem ser graves, principalmente em pacientes com problemas de imunidade.

O acometimento do fígado pelo adenovírus é extremamente raro, mas conhecido. Não era esperado, conforme o que sabemos hoje, que pudesse causar um surto como o atual. Porém, como uma parte considerável dos casos mundiais tiveram esse vírus identificado, as principais hipóteses foram construídas levando esse fato em consideração. 

De forma geral, muitos agentes infecciosos conhecidos estão sendo pesquisados além do adenovírus, de acordo com as especificidades de cada país, ou uma possível síndrome pós-infecciosa do SARS-CoV-2 que torne as crianças mais suscetíveis a infecções por outros vírus. Além disso, são consideradas as hipóteses de uma nova variante do coronavírus ou de uma intoxicação como causa primária, embora estas sejam menos prováveis. Por último, resta a hipótese de se tratar realmente de um agente etiológico nunca antes identificado. 

Como a grande maioria dos casos notificados são de crianças menores de seis anos, uma população que ainda não havia sido exposta à vacina contra a covid-19, a hipótese de essas hepatites estarem relacionadas à vacinação foi descartada.

Causas conhecidas de hepatites agudas em crianças e adolescentes

A hepatite grave nessa faixa etária, levando à insuficiência do fígado, é uma ocorrência relativamente rara. Muitas causas de diferentes naturezas já foram associadas ao quadro, mas é importante ressaltar que grande parte dos casos de hepatite aguda grave em crianças e adolescentes normalmente já não tinham sua causa determinada. 

Os levantamentos a respeito desses agravos costumam identificar uma proporção de até 40% de casos de insuficiência hepática aguda nessa faixa etária sem definição de etiologia, por diversos motivos. Portanto, embora haja um surto de hepatites em crianças em alguns países, com um aumento na incidência de casos, não é incomum o fato de que não tenham uma causa específica.

Entre as causas infecciosas de hepatite, além das hepatites virais A, B, C, D e E, contam-se outros vírus, como o herpes simplex, o Epstein-Barr, o citomegalovírus, os enterovírus e até as arboviroses, como dengue, Zika, Chikungunya e febre amarela. Além disso, algumas infecções bacterianas também podem mais raramente acometer o fígado.

Intoxicações por medicamentos como paracetamol, albendazol e fluconazol são causas bastante conhecidas de hepatites agudas. Muitas doenças autoimunes, congênitas e vasculares mais raras também podem desencadear o quadro de intoxicação. 

Portanto, dentre as hipóteses já levantadas, a menos provável é de que se trate de um agente etiológico completamente desconhecido. Categorizar e notificar um quadro como hepatite aguda de etiologia a esclarecer não significa necessariamente que se espera descobrir algo desconhecido até o momento, e sim que é preciso refinar a investigação das causas e o entendimento geral das hepatites graves em crianças e adolescentes, não só devido ao surto atual, mas também pela existência histórica de um déficit de conhecimento em relação a esse agravo.

Consulte os casos atualizados quinzenalmente nos anexos abaixo.